São muitos os ex-combatentes da guerra colonial que nos retratam as suas aventuras, os seus dramas, os seus medos, as suas impressões, as suas angústias vividas no teatro de guerra que passa, quase sempre pelo norte de Angola. Em forma de novelas, crónicas, contos ou simples diários vão-nos relatando as suas experiências vividas no auge da juventude. Muitos deles passaram pelo Quitexe pelo que é recorrente encontrarmos o nome desta vila nas suas memórias vertidas para o papel.
O livro que trazemos hoje, de Francisco Marcelo Curto, é um desses casos. “Tu não viste nada em Angola”, título parafraseado do poema de Manuel Alegre (Em Nambuangongo tu não viste nada/não viste nada nesse dia longo longo/a cabeça cortada/e a flor bombardeada/não tu não viste nada em Nambuangongo), é a descrição de uma campanha que começa em Junho de 61 com a chegada a Luanda e só termina dois anos depois em 63. As primeiras impressões em Luanda, depois a partida para o norte, a guerra cruel, como todas as guerras e já a percepção de que nada fazia sentido.
Nesta altura a guerra encontrava-se no auge naquela zona de Angola. O Quitexe era terra maldita. Não era com agrado que os soldados lá regressavam:
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“Não digo nada. Já ando a dar ordens, os soldados resmungam, mal acabam de aquecer a canja da ração e de a comer e “vamos voltar ao Quitexe”. Tenho que esconder que também não estou de acordo. Dou a volta à parede – resto da casa em que os pretos comprariam a sua fuba, os panos, o sal, o açúcar. A malta está aborrecida com a volta ao Quitexe. E eu disfarço.”
O Quitexe retratado como terra de pó, tascas sujas e administrador vestido de branco
“Antes de morrer
As viaturas arrumam-se à saída do Quitexe.
Outra vez a morte, desta vez em promessa. “Na semana passada mataram um soldado a sete quilómetros”, diz-nos o tasqueiro.
As casas sujas, com o pó a trepar pelas paredes, a garrafa de cerveja fica com lama quando a ponho em cima do balcão. O Sol é uma pata lá fora. Vou à frente desta vez. Uma preta com o filho pegado às costas pelos panos compra peixe seco no extremo do balcão. A loja sebenta. “Levo pró caminho…”, diz o Quatro Quinze. É o nome dele. Um minhoto com cara de vaca, bonacheirão, mostra-me as garrafas de cerveja, os olhos dentro de um círculo de pó. Sinto-me mal. “O pior é a vinte quilómetros. Uma ravina lixada, toda coberta de mata…”, não ouço o tasqueiro, vou-me daqui. Os criados negros carregam - ou descarregam? – café para um armazém. O alfaiate no alpendre toca a máquina, diligente. O Fernando desaparece no capim com uma preta. Os pés pesam-me. Sento o corpo, espero o resto da coluna. O Sorna especa-se à minha frente, bebe cerveja como todos fazem. “Então, chateado?”, pergunta. Levanto os olhos e sorrio, mal, sei bem que me é impossível. O tipo aponta com o queixo a estrada e acaba por ficar a olhar, “Deixe lá, não vai haver nada!”, sempre a pensar que para ele não vai haver nada.(…)
Tudo muito quieto, que horas são? O sol queima, isso é que é certo. Dois brancos olham para os militares por ali. Reis da terra, mas inquietos.
O resto das viaturas vai aparecendo. O Administrador fala com um cipaio, todo vestido de branco, ventrudo, pernas abertas, no alpendre da sua casa. “Porque é que ele estará vestido de branco?” Caminho para o jeep e espreito a estrada mergulhada na mata. Um vento misturado com sol atinge-me quando atravesso a rua.”
À medida que avançam os combates as consciências vão-se inquietando e coloca-se em causa o sentido desta guerra inglória:
“No dia seguinte, bem de manhã, o Cap e o Marques vão para um lado com o grupo. Eu vou para o outro. O guia é um voluntário. Caminhamos duas horas por carreiros tortuosos, sempre a subir à procura da sanzala, sempre nas elevações. Às nove da manhã, uma clareira, bananas, feijoeiros, sinais frescos “deles”. De repente, na encosta em frente, uns vultos negros e logo duas, três, seis rajadas. Os vultos mexem-se, fogem, são “eles” enfim, “eles que os soldados nunca viram, “eles”, os odiados negros inimigos. Faço parar o fogo. Vamos ao outro lado. Pela orla da mata, tentar apanhar alguém.
De baixo de um tronco, gemidos e um vulto negro. De baixo de outro uma mulher, farrapos cinzentos e sujos, e uma miudita que tenta escapar e é logo agarrada. No tronco dos gemidos o voluntário, com um medo que se lhe vê no corpo, dispara duas vezes a mauser. Os gemidos calam-se. Puxámos o vulto. É uma rapariga de nove ou dez anos. Arranco a arma ao voluntário. Culpo-me e esbracejo. A morte fica ali. O maqueiro faz um penso no tornozelo da mulher, carregamo-la na maca, com protestos dos soldados. E a miudita que parece ser sua filha.
No dia seguinte regressamos. Agora a cena é de raiva e culpa, revolta, àquela gente que de manhã plantava mandioca e não esperava os tiros. São aqueles os inimigos? A miudita vive connosco até mais ver. Os soldados tratam-na como a filha que têm ou querem vir a ter. A mãe (?) está internada no hospital de Luanda. Vai ser interrogada. Deve ser um prisioneiro valioso. O que se passou é fundamental para mim. “Não teve culpa, meu alferes”, diz-me o Fernando. E não tive? Podia ter evitado a morte desnecessária? Claro que podia. Não importa saber isso agora. O que importa é a gratuitidade de tudo isto.
Daqui a poucos dias o meu filho distante vai fazer três anos. Também ele pode ser morto enquanto brinca no quintal, ao pé da figueira? Morto de manhã enquanto o pai mata por aqui? Também onde ele está o perigo existe? Ou lá não há guerra?
A minha mãe diz: “São coisas que acontecem. Ninguém é responsável e tu muito menos”. Se isto fosse bastante!”
Francisco Marcelo Curto (1937-2001), advogado, professor universitário de Direito do Trabalho foi um opositor ao regime ditatorial de Salazar e Marcello Caetano e um dos fundadores do Partido Socialista, em 1973, na Alemanha. Participou activamente na luta antifascista, tendo intervindo na campanha eleitoral para a Assembleia Nacional em 1969, integrado na CDE (Comissão Democrática Eleitoral), e na preparação e nos trabalhos do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, em 1973.
Fez parte do Secretariado Nacional do Partido Socialista, antes e depois do Congresso de Dezembro de 1974, tendo ainda liderado nos anos 80 a tendência «Esquerda Laboral» no interior do PS.
Entre os anos 60 e 70 colaborou com vários sindicatos nacionais, tendo estado na fundação da Intersindical.
Foi deputado entre 1975 e 1987 e ocupou entre 1976 e 1977 o cargo de ministro do Trabalho no I Governo Constitucional.
Mais adiante retoma o tema do abandono a que estão votados estes valentes homens, sem exército, sem armas, sem qualquer apoio:
“Trago os olhos pisados das imagens da morte. Não quero mais repetir o dia de ontem e os que estão para lá do dia de ontem. Não quero mais ver morrer estes meus bravos companheiros. E se eles morrerem, os heróis do Quitexe que ontem eu vi despertos às quatro da madrugada, sentados no pavimento do edifício da Administração, de dedos nos gatilhos e os olhos raiados de sangue das vigílias (…) – então quero também lutar com eles. E morrer com eles, que me parece ser neste momento o seu destino.(…) E como nos vemos abandonados. Como é esmagadora e maior que as nossas forças esta solidão. E porque não vêm esses soldados? E porque não chega o auxílio que deve a Angola toda a Metrópole?”
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Horácio Caio, nascido em Moçamedes em 1928 cresceu e estudou, no entanto, em Portugal. Em Janeiro de 61 partiu para Angola integrado numa equipe de cinema encarregue da produção de documentários. Foi apanhado pelos acontecimentos de Março de 61 e assim pode dar testemunho e notícia (sempre condicionada à censura vigente) da tragédia que se abatera sobre os brancos em Angola.
Embora a sua empatia com o regime de Salazar seja total é possível deslumbrar aqui e ali críticas quer à forma como os seus textos eram censurados (não culpando o regime, mas um ou outro serventuário), quer à política de abandono das colónias seguida até então pela ditadura. No entanto não deixa de remeter todas as culpas da revolta para os inimigos externos de Portugal, nomeadamente os novos países africanos e para as comunidades religiosas protestantes e tocoístas. Nem uma palavra sobre os desmandos das autoridades administrativas coloniais que criaram o terreno fértil para a sementeira de ódios recalcados. Nota-se, antes, uma velada apologia ou, pelo menos, justificação para a vingança e o ajuste de contas que se seguiu:
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“O desespero mina. Mina todas as pessoas. Há tiros todas as noites nos musseques de Luanda. A cidade já não desperta porque está desperta. Grupos de terroristas escondem-se nos bairros indígenas. Cada negro é um suspeito. Muitos são criminosos.”
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