Sábado, 17 de Novembro de 2007

O DESPERTAR DOS COMBATENTES – Fotos com estórias em Angola – Joaquim Coelho – Clássica Editora, 2005

 

 

O livro que trazemos, hoje, a este blogue é um dos mais valiosos testemunhos sobre a guerra que não pode ficar no esquecimento. A descrição nua e crua do ambiente e dos dramas terríveis passados nas matas do norte de Angola obrigam-nos a uma reflexão sobre esta geração de homens que “sofreram e sobreviveram aos anos da guerra que lhes roubou parte dos sonhos da juventude”,  “que morreram como heróis inocentes" e ainda "os estropiados do corpo e da alma”.

De destacar, igualmente, o magnífico acervo fotográfico constituído por mais de 200 fotografias que constitui uma  bem documentada imagoteca da guerra colonial.

 

Na introdução ao livro o autor refere que «O DESPERTAR DOS COMBATENTES... é um testemunho com muitos indivíduos vivendo nos extremos entre o amor e o ódio. Os momentos de grande sofrimento, angústia e medo foram protagonizados por seres determinados e fortes; e, quando envolvidos na sociedade, eram os mais sentimentalistas, propensos ao amor e ao prazer. De quando em vez, também apareciam situações que desaguavam na violência ou na patetice desordenada. As contingências da guerra destruíram muitos sonhos e muitos homens bons tornaram-se incongruentes.
Pretendo, assim, dar o meu humilde contributo para que a generalidade dos Portugueses compreenda quão grandioso foi o esforço dos Combatentes nas guerras coloniais ou guerras do ultramar.”(…)

 

O livro retrata os anos passados pelo autor na guerra em Angola entre Abril de 61 a Março de 63.

Da forte motivação da defesa da pátria e dos portugueses massacrados o ânimo do autor vai decrescendo ao sentir-se carne para canhão numa guerra que só aproveita os interesses de grandes companhias nacionais e estrangeiras, estas jogando nos dois tabuleiros da guerra, para nunca perderem o acesso à exploração das matérias primas. E os que, na retaguarda, enriquecem instalados nos meandros sujos da guerra:

 

E quando olhamos à retaguarda

sentimos um aperto nos pulmões;

continua a desfilar na parada

um bando de ignóbeis tubarões.”

 

Quitexe, 1961

 

      “ QuitexeNestes dias de desgraça, a selva é deslumbrante e diabólica. Na encosta da vida, o caminho é cada vez mais íngreme e o corpo mal se arrasta pelos trilhos que nos conduzem ao encontro da morte. (…)

       A guerra caldeou as minhas ideias com os ingredientes da sabedoria que me faz amadurecer e sair do mundo dos ingénuos. Já começo a ficar farto de ouvir lições de patriotismo saloio, proferidas por aqueles senhores bem instalados nos gabinetes de Luanda e que desprezam os desgraçados que tiveram o azar de ser perfurados pelas balas inimigas. Tombaram nas terras dos Dembos e o seu sangue jamais será resgatado, porque estamos entregues à bicharada, que é o mesmo que dizer a uma cambada de indolentes pançudos. Bem pode o Fernando Farinha continuar a cantar o «Fado das Trincheiras», que o inimigo vai recebendo novas armas e com tiros cada vez mais certeiros. Tudo se passa em circuito fechado: os mesmos países que levam as matérias-primas de Angola vão fornecendo mais e melhores armas aos bandoleiros. Como quase tudo se repete, perdemos a esperança de vencer contra aqueles que nos atraiçoam. Enquanto os que morrem nunca são os mesmos.”

 

 

O relato das situações macabras sucede-se:

 

Vista de cima do terraço, a estrada mais parece um campo de extermínio, com manchas de sangue e cadáveres com os braços e pernas em posições dantescas, à mistura com as cabeças dos bailundos lambiscadas pelo mabecos e pelas hienas. O cheiro nauseabundo é insuportável! Até os olhos começam a lacrimejar. Ao fim de três dias, naquele ambiente de morte, o cheiro pestilento entranhava-se nas roupas e já mal se respirava.

 O soldado Marcelo já começa a temer os fantasmas:

- Meu sargento, aqueles olhos estão a dar cabo do meu pensamento. A cara do preto não deixa de me fitar! Está sempre a olhar para mim!”

 

A morte dos inocentes:

 

“Esta mágoa em noite de cacimbo

martela lentamente o pensamento

no instante em que ruge o avião

partindo o silêncio com estrondo...

as bombas vomitando o fogo

que a combustão do napalm espalha

nas aldeias de fantasmas famintos

que matam todas as esperanças

da gente pobre e franzinas crianças

que tentam fugir de qualquer jeito

- vergonha da pátria sem o proveito!”

 

E sempre o Quitexe:

 

     «A caminho de QUITEXE  - Quem tem sorte foge à morte.»

Naquela região, a simples função de encher água nos cantis obriga a manter vigilância apertada, porque os bandoleiros aparecem de qualquer lado. Eles são tantos que um simples descuido pode ser fatal.

     Tal como nos primeiros meses da guerra, esta região dos Dembos tem sido complicada para muitas das colunas que fazem o percurso da estrada do Úcua para Quibaxe e mais para Norte: Negage, Carmona, Quitexe e outras localidades do café.

     Os Voluntários da “Vanguarda Salazar” já têm uma dramática experiência das horas de repouso, e das surpresas que assustam nas imediações da estrada do Piri. Na estrada de Quitexe, foram surpreendidos por um grupo de mais de duzentos bandoleiros que, em menos de dez minutos, ceifaram a vida a sete voluntários. Embora a reacção pronta dizimasse parte dos atacantes, a marca da morte ficou bem vincada nos olhos dos voluntários.”

 

 

O descanso:

 

“Três dias de descanso trazem outro fulgor aos pára-quedistas que aproveitam para uma limpeza ao corpo e regeneração do espírito. Era certo que uns dias calmos na povoação do Quitexe com gente de todas as cores ajudam a recuperar forças e a fortalecer a moral das tropas. Ali vagueiam e preparam algumas galinhas no churrasco para dar outros sabores aos estômagos, depois de cinco dias a rações de combate e bolachas da Manutenção Militar.

     Ninguém ficou indiferente à chegada do novo chefe de posto, homem de aspecto rude e tez queimada por muitos anos sob os ares dos trópicos. Sente-se o semblante da população negra mais carregado, olhares desconfiados remetem-se a um recolhimento que não é habitual; até o tempo de recolha de alimentos nas lavras foi reduzido. E o chefe nem sequer convocou o feiticeiro Mamadu para a noite da festa da sua posse administrativa de Quitexe. Aproveitou a presença de vários oficiais e sargentos, que estão de passagem para outras missões, e expôs a sua ideia da psicossocial como solução para acabar com as rivalidades entre os bailundos e os bacongos, e destes com os brancos.

     Mas a moral da tropa despertava com a nova alvorada e os olhares logo se alinharam na ampla clareira que vai das palhotas até ao posto administrativo. Com o chefe de posto veio uma bela e jovem mulata!(...)”

 

Joaquim Coelho, natural de Penafiel, ingressou na Força Aérea e Tropas Especiais de Intervenção, tendo desempenhado diversas missões no Ultramar. Em 1961, foi destacado para Angola, onde, para além do cumprimento de serviço militar, colaborou como repórter fotográfico com o jornal Província de Angola e com a revista Notícia.

Depois de regressar a Portugal passados dois anos, foi admitido na Academia Militar e entre 1965-68 esteve novamente em missão em Moçambique.

Para ler mais sobre a obra de Joaquim Coelho entre aqui

publicado por Quimbanze às 10:43

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